Nesta história, o lobo mau é loiro. Vá, tem o pelo claro. Não tenho a certeza de que seja ou não loiro, não há lobos loiros, mas imaginem se fosse. Imaginem um anjinho mas com focinho e dentes de lobo. Hmm. Tem os olhos claros, como seria de esperar, e apesar de ser quase previsível pela sua aparência quase dócil, nunca mas nunca se disfarça de cordeirinho. Já lá vão os tempos, menos mal. Este sabe que é o lobo, o vilão desta história. E aqui entre nós, não se importa - nunca o impediu de nada. Dispensa apresentações, para quê? Já toda a gente sabe quem ele é.
Será que o lobo comerá frangos? Talvez fosse boa ideia. Ou se são só porcos, cordeirinhos, leitões e leitoas (isto diz-se?), não vos sei dizer que nunca soube os hábitos alimentares dos lobos. Perguntem-lhe, que eu não me chego perto. Também já lá vão os tempos, em que, qual capuchinho vermelho com a sua cestinha, o confundia - não com a avozinha, mas com um cão.
Cuidado que um cão raivoso por vezes se esquece de quem atacar, podia dizer-vos, mas quem são os lobos mais do que cães maiores? E mais assustadores, ou pelo menos mais perigosos.
Perigoso ou não, este lobo nunca me fez mal nenhum. Os caçadores é que se preocupam demais. Não os censuro, quem é que deixa uma miúda andar no meio dos lobos? Mesmo que não seja no meio deles, pelo menos andar acompanhada com um só lobo assim? Que à primeira oportunidade lhe pode dar uma trinca e adeus braço, adeus perna, olá complicações, olá muletas, olá prótese, olá marcas para a vida inteira? Eu não acho bem. Acho muito mal até, se querem saber. Mas não era o meu caso. Acabei por aceitar que não se pode andar sempre na corda bamba, há que ter cuidado com a vida. Então os caçadores lá foram em expedição à procura do lobo, pisaram-lhe a cauda, deram-lhe um tiro só para o avisar, não voltes aqui que lobos não são bem-vindos à nossa aldeia. O lobo irritou-se. Não se magoou nem nada, mas quem brinca com lobos arrisca-se a levar uma dentada mais cedo ou mais tarde. Eu já sabia, não quis foi fazer caso. Foi-se embora. Tentou voltar. Expulsei-o eu: então, de volta por aqui? Adeus, que agora vivemos em paz. E ele foi, para muito longe, pensei eu.
Há uns tempos para cá, saí da minha aldeia para passear, e a primeira coisa em que pensei foi procurar o lobo. É uma estupidez. Não desde que o mandei embora, mas desde há uns tempos que o quero ver outra vez, porque acho que tenho qualquer coisa para lhe dizer e ele não me vai tratar com rosnos. Quando o vi, não só não disse nada, como fiquei feita a olhar, escondida, até ele passar por mim e olhar com a altivez de um animal ferido. Furioso. Sai daqui, que não te quero ver, antes que te faça mal outra vez. Outra vez? Quase como se eu não tivesse o direito (imagine-se!) de fugir dos lobos, de estar no meio deles, de não dar confiança, de dar confiança a mais. Até porque este nem é um lobo, era um cachorro que achava que era mau, e que por isso dele diziam que era um lobo. Ele acreditou. Quem não acreditou fui eu, e por isso, de cada vez que saio da aldeia, faço questão de o continuar a procurar. E às vezes até o encontro.
Moral da história: Quem só tem o espírito da história não compreendeu a lição da vida e tem sempre de retomá-la. (Nietzsche)