Tuesday, April 06, 2004

"Olho para a janela e lembro-me de ti. "Só agora acredito que a Primavera chegou", murmuro. (...) Quando o ar se enche dos cheiros da Primavera, lembro-me sempre de ti. E todas as meninas de fitas no cabelo, caminhando entre os canteiros dos jardins, têm o teu rosto. O rosto que eu construí ao longo destes anos todos (...), o rosto que têm sempre as amigas perfeitas que nos acompanham a vida inteira.
E tu foste a mais perfeita das amigas. (...) Tu eras a certeza de que a vida podia ser outra coisa. Desde o dia que te conheci eu percebi que, para lá da escuridão e dos corredores intermináveis da casa, havia mundos diferentes, com jardins onde se podia correr, música vinda sabia-se lá donde, a brisa a invadir o nosso corpo. (...)
Foi contigo que aprendi que (...) é sempre preciso acreditar que a claridade é mais forte, que a felicidade é possível, mesmo que se construa apenas com o cheiro dos jardins, meninas de cabelo a esvoaçar ao vento, música triste a sair das casas, pessoas que não conhecemos e nos sorriem pela manhã, as vidinhas banais de quem passa a nosso lado, e a voz das mães estendendo-se ao fim da tarde pelas ruas, chamando os filhos porque são horas de jantar.
E foi contigo que descobri que a vida parece sempre melhor de manhã, com sol, vento fresco e céu azul. Se possível com gente que acabou de acordar e se debruça da janela e nos deseja um bom dia. Penso que seríamos todos mais felizes se os nossos dias começassem dessa maneira.
Ensinaste-me (...) a sobreviver. (...) Tens ensinado muitas das minhas amigas adolescentes que, através de mim, te conhecem. (...)
Acho que nunca te agradeci devidamente tudo o que fizeste por mim.
(...) Mas tenho muita pena que tenhas desaparecido das nossas vidas, sobretudo neste momento complicado em que, tenho a certeza, irias fazer muito bem aos meus amigos mais novos. (...)
E tenho cá uma fé de que muita coisa seria diferente.
Volta depressa! Fazes muita falta."
Alice Vieira - Carta a Clarissa